Cinema no Jaraguá: primeiro filme produzido no distrito completa 40 anos

"O rumo certo para a prosperidade" (1978) é o nome daquele que talvez tenha sido o primeiro filme já criado no distrito Jaraguá, periferia noroeste de São Paulo.

A obra, financiada pela extinta estatal produtora e distribuidora Embrafilme, completa 40 anos em 2018.

  Logo da Embrafilme, estatal criada em 1969 e extinguida em 1990. A empresa produziu "O rumo certo para a prosperidade" em 1978. Imagem: acervo Ancine
Logo da Embrafilme, estatal criada em 1969 e extinguida em 1990.
A empresa produziu "O rumo certo para a prosperidade" em 1978.
Imagem: acervo Ancine
Filmado no centro do Jaraguá (ao lado da Igreja Matriz Paroquial Nossa Senhora da Conceição), no apiário do técnico apicultor e roteirista de cinema Nikolaos Argyrios Mitsiotis, o curta-metragem aborda a questão do uso das abelhas mansas a serviço da agricultura.

O próprio Nikolaos foi quem escreveu a história.

Com a extinção da Embrafilme em 1990, não se sabe onde foi parar o original ou as cópias (se houverem) deste curta-metragem.

O enredo de "O rumo certo para a prosperidade"

O filme aborda a história de um vovô (encenado pelo suíço Guilherme Wirtz) que presenteia seu netinho (dramatizado por Kassandros Mitsiotis, na época com 5 anos de idade) com uma caixa de abelhas nova e vazia, para a qual são transferidos favos com abelhas.

Durante a operação de transferência dos animais para a caixa, o vovô manipula as abelhas sem equipamento de proteção como macacão e máscara enquanto explica ao neto que elas não ficam agressivas se forem tratadas com amor e conhecimento.

Nikolaos e Wirtz, em 1991. Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Nikolaos e Wirtz, em 1991.
Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
"Naquela época, mostrar abelhas em quintal e mexer com elas na presença de crianças era uma situação fora do comum, pois o povo andava apavorado com as abelhas africanas", ressalta Nikolaos.

As abelhas africanas haviam sido capturadas e trazidas para o Brasil pelo engenheiro agrônomo geneticista Warwick Estevam Kerr, em 1956, mas em uma experiência em Rio Claro, algumas delas foram libertadas, se reproduziram e deram origem às agressivas abelhas africanizadas, que se espalharam por toda a América.

A ideia do curta-metragem era transmitir a  premissa de que, na agricultura, o ideal era trabalhar com as abelhas mansas europeias.

Em outra cena, o vovô explica como as abelhas polinizam, enquanto o câmera mostra os pequenos animais trabalhando em um capítulo de girassol.

Kassandros segurando um capítulo de girassol resultante de perfeita polinização. Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Kassandros segurando um capítulo de girassol resultante de perfeita polinização.
Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
O vovô segue a explanação dizendo que da polinização resulta a frutificação e, com isso, melhores e maiores safras.

As pessoas que fizeram o filme acontecer

O curta-metragem foi roteirizado por Nikolaos e teve Edson Cerreti como diretor artístico.

José Calhado foi o diretor de fotografia que fez as filmagens e José Pinto foi o locutor.

Guilherme Wirtz encenou o vovô que presenteia o netinho com abelhas mansas.

Kassandros, filho de Nikolaos, ficou com o papel do neto.

Mais sobre o roteirista e os atores

Nikolaos Argyrios Mitsiotis nasceu em 1942 e formou-se como roteirista de cinema em 1971 pela Aliança Francesa (vide diploma).

Diploma de roteirista de Nikolaos. Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Diploma de roteirista de Nikolaos.
Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Ele já havia feito alguns roteiros antes produzir "O rumo certo para a prosperidade", além de se dedicar a apicultura.

Um desses roteiros, chamado "Fúria desenfreada", é um longa-metragem que, segundo Nikolaos, era utilizado como exemplo em cursos de cinema ministrados pelo professor Ilias Evremidis em quase todas as capitais estaduais do Brasil.

Já Guilherme Wirtz, o vovô em "O rumo certo para a prosperidade" era um cidadão suíço nascido em Solothurn.

O homem foi discípulo direto do fundador da Antroposofia, Rudolf Steiner.

Wirtz tinha 78 anos na época da filmagem.
Em 1979, um ano após a criação do curta-metragem, Nikolaos e Guilherme fundariam a Associação Paulista de Apicultores Criadores de Abelhas Melíficas Europeias (Apacame), que existe até os dias atuais.

Por fim, Kassandros Mitsiotis (que fez o papel do neto, no filme), é filho de Nikolaos.

Ele tinha apenas 5 anos na época da produção do curta-metragem.

Hoje com 45 anos, Kassandros é engenheiro eletrônico e vive em Genebra, Suíça.

De onde veio a ideia para o curta-metragem?

Em julho de 1978, Nikolaos organizou na estação São Bento do Metrô, em São Paulo, a "Primeira exposição de apicultura dinâmica" (vide digitalização de página do Jornal da Tarde).

Nota sobre exposição realizada por Nikolaos na estação São Bento do Metrô, em 1978. Foto: acervo Nicolaos Argyrios Mitsiotis
Nota sobre exposição realizada por Nikolaos na estação São Bento do Metrô, em 1978.
Foto: acervo Nicolaos Argyrios Mitsiotis
Para poder realizar essa empreitada, era necessário que ele abrisse uma empresa, a qual foi chamada de Cetecna.

A Cetecna teve como sócios os senhores Lenhard Robert Schirmer, José Pinto e Nikolaos.

Kassandros durante a "Exposição de apicultura dinâmica" organizada por seu pai.  Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Kassandros durante a "Exposição de apicultura dinâmica" organizada por seu pai.
Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Nikolaos diz que José Calhado e o diretor Edson Cerreti queriam aproveitar o financiamento da Embrafilme para produzir um filme original e, em visita ao evento no Metrô, encontraram a oportunidade com o tema das abelhas.

"Na exposição de apicultura eles conheceram coisas novas e eu tinha interesse em introduzir esse tema nas telas das salas de cinema", explica Nikolaos, "então, aceitei trabalhar com eles".

Mais tarde o sócio da Cetecna, José Pinto, que tinha uma voz com timbre agradável, seria escolhido para ser o locutor do curta-metragem.

A filmagem e o nascimento do curta-metragem

Nikolaos explica que Cerreti não apareceu nas filmagens, "meses antes, eu havia falado com ele sobre outro roteiro meu, intitulado 'Fúria desenfreada'", o roteirista comenta o que parece ter sido um fator crucial para que que Cerreti confiasse a ele a criação de um curta-metragem com o tema das abelhas.

No dia da filmagem, o diretor artístico apenas mandou José Calhado ir ao apiário, em Jaraguá, para fazer o trabalho.

Calhado se encaminhou ao apiário e lá encontrou o sr. Wirtz, que estava fazendo uma visita ao amigo Nikolaos.

"Quando o Calhado me explicou que eles queriam fazer o filme, eu apenas tomei um café e na sequência fiz um roteiro às pressas no qual incluí o meu visitante, o sr. Wirtz, e o meu filho Kassandros como atores", explica Nikolaos.

Mais tarde, no estúdio, a voz do locutor José Pinto foi sobreposta a de Wirtz.

Foi assim que nasceu "O rumo certo para a prosperidade".

O filme tinha "Classificação Especial"

"Ao longo de 5 anos esse filme foi projetado nas salas de cinema do Brasil imediatamente antes da projeção dos filmes longa-metragens", informa Nikolaos ao Jaraguá SP Post, "ele tinha Classificação Especial".

No Decreto Lei nº 43 de 1966, que criava o Instituto Nacional de Cinema (INC), havia quatro diretrizes sobre esse tipo de classificação, acompanhe:
  • O INC poderá conceder a filmes nacionais de curta metragem "Classificação Especial", atendendo ao nível de sua realização e à natureza cultural e educativa.
  • Todos os cinemas existentes no território nacional ficam obrigados a exibir, durante determinado número de dias, por ano, os filmes nacionais de curta metragem de "Classificação Especial".
  • O número de dias para exibição obrigatória de filmes de "Classificação Especial" será anualmente fixado pelo Conselho Deliberativo do INC, atendendo ao volume de sua produção e às possibilidades de programação de mercado exibidor.
  • A exibição de filme de "Classificação Especial" isenta os cinemas da obrigatoriedade da exibição, na mesma sessão, de outro filme de curta metragem.
Ocorre que todas essas diretrizes haviam sido revogadas pela Lei nº 6.281/1975, que extinguia o INC e ampliava as atribuições da Embrafilme (criada em 1969).

Isso significa que em 1978, quando "O rumo certo para a prosperidade" fora lançado, a tal "Classificação Especial" não existia mais formalmente.

Pode ser, contudo, que essa classificação existisse informalmente ou que tenha sido formalizada em outro documento e de uma outra forma, com outro nome, o qual não foi encontrado por mim, o jornalista Marinaldo Pedrosa (que escreve este artigo).

O Decreto nº 77.299/1976, por exemplo, estabelecia em seu inciso 13 do artigo 2º:
  • Estabelecer normas para exibição obrigatória de filmes nacionais de curta metragem e jornais cinematográficos, inclusive regulando sua participação na receita de bilheteria.
O leitor deve observar que aí não se fala em "Classificação Especial", mas pode-se dar a entender que os curtas nacionais deveriam ser exibidos nos cinemas, muito provavelmente antes dos longa-metragens.

Por que não há cópias disponíveis de "O rumo certo para a prosperidade"?

Em 1990, o na época presidente Fernando Collor de Mello sancionou a Lei nº 8.029/1990, a qual extinguiu mais de uma dezena de entidades de administração pública federal, dentre elas a Embrafilme.

Com o fim da Embrafilme, alguns filmes do acervo podem ter sido perdidos e/ou extraviados.

Protesto, no Rio de Janeiro, contra a extinção da Embrafilme (abril de 1990). Foto: Luiz Pinto/Agência O Globo
Protesto, no Rio de Janeiro, contra a extinção da Embrafilme (abril de 1990).
Foto: Luiz Pinto/Agência O Globo
O fato é que, hoje, não há notícias de que exista uma cópia ou original disponível de "O rumo certo para a prosperidade".

Em 2004, a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) divulgou a nota "Acervos Embrafilme e Concine, recuperados", na qual dizia que a posse do material havia sido transferida do Ministério da Cultura (Minc) para a Ancine por meio do Decreto nº 4.456/02.

Leia a seguir, o trecho mais importante da nota para nós que gostaríamos de contar com uma cópia do curta-metragem produzido em Jaraguá:
"O material abrange toda a documentação do cinema brasileiro desde a década de 1930, constando todos os registros de filmes que foram exibidos no país, tanto no cinema quanto na TV, os processos relativos à produção de filmes no período da EMBRAFILME e os borderôs das salas de exibição das décadas de 70 e 80, dentre vasta documentação que se constitui num material de pesquisa fundamental para a compreensão da atividade cinematográfica no país e essencial para o trabalho de consulta de pesquisadores e historiadores."
Durante a produção desta matéria para o Jaraguá SP Post, enviei um e-mail para o escritório regional da Ancine, em São Paulo, e outro e-mail para o Centro Técnico Audiovisual da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, o qual detém em seu acervo alguns filmes da Embrafilme, em que peço uma cópia de "O rumo certo para a prosperidade". Até agora não obtive resposta.

O uso das técnicas de cinema para documentar experiências com abelhas

Em dado momento de sua história, Nikolaos passou a utilizar os conhecimentos que tinha como documentarista em suas atividades de apicultura.

Em 1980, por exemplo, ele filmou em Super-8 o desembarque de núcleos (pequenas colmeias) na Ilha da Vitória, onde faria uma experiência de fecundação controlada com abelhas.

Esse documentário foi chamado de "Primeira experiência de fecundação natural e controlada de rainhas e matrizes da raça Apis mellifica carnica".

No mesmo ano, tal filme fora exibido durante os eventos do "5º Congresso Brasileiro de Apicultura" e "III Congresso Latino-ibero-americano de Apicultura" realizados na Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.
Certificado de participação de Nikolaos como apresentador nos eventos da Universidade Federal de Viçosa. Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Certificado de participação de Nikolaos como apresentador
nos eventos da Universidade Federal de Viçosa.

Apicultor, roteirista e escritor

Além de apicultor e roteirista, Nikolaos também é escritor.

Em 1983 ele produziu e publicou pela Editora Três a revista "O reino mágico das abelhas", que vendeu mais de 200 mil cópias nos anos seguintes.

Capa da revista "O reino mágico das abelhas". Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Capa da revista "O reino mágico das abelhas".
Foto: acervo Nikolaos Argyrios Mitsiotis
Na internet é possível encontrar textos diversos sobre essa revista e há até quem venda exemplares dela no Mercado Livre (sem a autorização de Nikolaos).

Mais notícias sobre Nikolaos Argyrios Mitsiosis

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Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

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