O que revela o opúsculo de Narciza Manzo?

A palavra "opúsculo" quer dizer "livro de poucas páginas", exatamente o que Narciza Ferreira da Silva Manzo escreveu em 1984, dois anos após a morte de seu marido que conhecera em 1922, o pintor Henrique Manzo (1896-1982) que, por sua vez, foi o fundador da Galeria Narciza, no bairro Jaraguá.

Narciza e Henrique Manzo, pintados pelo próprio Manzo. Esse quadro pertence ao acervo da Galeria Narciza.
Narciza e Henrique Manzo, pintados pelo próprio Manzo.
Esse quadro pertence ao acervo da Galeria Narciza.
Tal como nos mostra o registro sobre Henrique Manzo publicado na Enciclopédia do Itaú Cultural, este artista teve uma carreira muito intensa. Ele trabalhou como desenhista, pintor, cenógrafo, decorador, expositor, professor e restaurador, entre outros ofícios, quase sempre em grandes instituições da época, tais como o Conservatório Musical de São Paulo, Museu Paulista da Universidade de São Paulo (mais conhecido como Museu do Ipiranga) e Escola Paulista de Belas Artes, que ajudou a fundar.

Manzo também atuou como cenógrafo do Teatro Carlos Gomes, da Companhia Elsa, do dramaturgo Procópio Ferreira e da maior bailarina do mundo no período, a russa Anna Pavlova, que ficou tão satisfeita com o trabalho do artista, que quis contratá-lo para pintar vestidos e cenários de sua companhia de balé em viagens mundo afora.

De todos os seus ofícios, o que mais Manzo gostava era pintar. Alguns de seus quadros foram adquiridos por diversos museus do estado, dentre os quais o Museu Paulista, o Museu de Convenções de Itu, a Pinacoteca de Rio Claro e a Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pesp).

Fachada da Galeria Narciza em 2009
Fachada da Galeria Narciza em 2009
Uma de suas telas mais famosas pertence hoje ao acervo da Pesp. Trata-se da pintura "Labor", produzida com a técnica de óleo sobre tela, na qual Narciza é retratada enquanto realiza um trabalho de costura.

Estima-se que no museu que o próprio Manzo construiu, no bairro Jaraguá, estejam guardados outros 150 quadros dele. Apaixonado pela esposa, ele quis homenageá-la dando o nome dela à edificação que (por este motivo) conhecemos hoje como Galeria Narciza.

A Galeria Narciza se destaca aos olhos dos cidadãos de dentro e de fora do distrito, em parte devido à sua fachada na qual há uma pintura-mural intitulada "Coral da Paz" onde se vê 20 mulheres indígenas e duas crianças.


O pequeno livro de Narciza Manzo


No ano de 1984 Narciza escreveu um opúsculo. Nesta época, Manzo já havia se tornado definitivamente vivente nas mentes e nos corações daqueles que conviveram com ele. Ao ler o conteúdo deste livreto, você logo verá que Narciza quis fazer com que Manzo fosse lembrado também pelas gerações futuras.

A esta altura você leitor pode estar se perguntando como foi que este material chegou às minhas mãos. A resposta é que eu tive acesso a uma parte deste pequeno livro de Narciza no ano de 2009, enquanto investigava informações para a produção da reportagem "Uma joia escondida" sobre a referida galeria. Na época, entrei em contato com o sobrinho bisneto de Henrique Manzo, o atualmente renomado escritor brasileiro, Paulo Rezzutti, que me enviou o texto por e-mail.

Algumas das ferramentas do pintor Henrique Manzo em seu atelier anexo à Galeria Narciza
Algumas das ferramentas do pintor
Henrique Manzo em seu atelier anexo
à Galeria Narciza
Resolvi publicar o texto exatamente como me foi enviado, isto é, sem fazer nenhuma edição ou correção, pois desta forma, você leitor poderá captar melhor as vibrações e emoções de Narciza Manzo acerca de seu amado Henrique Manzo. Enfim, como você mesmo poderá vivenciar, não é preciso ser um poeta para sentir a poesia que emana dessas palavras:

Opúsculo, por Narciza Manzo

Em primeiro lugar Deus está em todas as horas. 
Uma vida de sessenta anos, que começamos juntos em 1922, pela vida e pela arte. Muito trabalho pelo pão de cada dia. Ele pintava cenários para Procópio Ferreira, Froes e outros mais. Trabalhava para o Museu Paulista, para a Faculdade de Direito no setor de Retratos e Restaurações e para o Museu de Itu. Foi professor da Faculdade de Belas Artes de São Paulo durante 30 anos. 
Henrique Manzo foi um símbolo da arte e do trabalho. Fez da natureza brasileira um pequeno museu para as crianças de hoje que serão os grandes brasileiros de amanhã, se Deus quiser. 
Os pais de Henrique Manzo foram imigrantes que vieram para São Bernardo do Campo. Manzo nasceu em 27 de dezembro de 1896 e, até os cinco anos de idade, teve uma vida muito difícil. Aos nove, começou a pintar, iniciou a luta, pintou o quadro do Beijo, que ainda existe e está no Museu do Manzo. A luta foi muito forte até os 79 anos, quando parou de trabalhar porque ficou doente, falecendo em 1982, aos 86 anos. Foi um símbolo de homem e de artista, de filho, de esposo e de bondade. 
Foi professor da Faculdade de Cultura, estabelecida na Estação da Luz, foi arquiteto, engenheiro e cenógrafo, construiu um salão para fazer cenários de teatro e morar. Veio então a idéia de comprar um terreno no Pico da Fazenda do Jaraguá em 1937, onde em 1953 construiu uma casa para caseiros e depois a Galeria onde estão guardadas as obras do grande Manzo. Aos 79 anos, pintou o retrato do Dr. Toné, diretor do Museu Paulista, e um outro para o Museu de Itu. 
Foi fundador do Salão Paulista de Belas Artes em 1922. Henrique Manzo achava que deveria haver um salão em São Paulo para que os artistas do Estado pudessem expor, e lutou muito para conseguir esse objetivo. 
Queria construir a casa e o museu no Jaraguá. Fez as plantas, começou a fazer contas e mais contas e o dinheiro, que era pouco, não dava. Ficou doente, as ruas eram de terra e criavam muitas dificuldades, mas tudo tem um fim. Levou um ano e meio para construir e viemos morar aqui em 1960. Em 1962, construiu o Atelier para trabalhar e poder pagar o que devia. 
Henrique Manzo nasceu pintor por natureza. Era muito inteligente, mas infelizmente quando era criança seus pais não tinham possibilidades para pagar um professor. Os pais do Manzo imigraram da Itália para o Brasil com dois filhos, Carmo e Henrique, mas o Henrique morreu. Quando nasceu outro menino, foi batizado com o mesmo nome. O que esse menino sofreu na vida não foi pouco. Muitas pessoas, entre eles o diretor do Museu Paulista, diziam que não deveriam contratá-lo, mas lhe davam trabalho mesmo assim porque era muito pontual em tudo o que fazia. Foi uma luta forte que teve para vencer. Lutou muito para deixar tudo o que fez de coração e alma para o mundo inteiro. 
A qualquer hora da noite, levantava para ver as estrelas. Dizia que a natureza era um sonho; homens, mulheres, o céu e a terra, tudo que era da natureza ele adorava. Henrique Manzo foi um mistério da natureza. Ele achava que não podia viver sem pintar e sem o sol, achava que o mundo era belo para quem sabia compreendê-lo, o homem é mais forte como o sol, a mulher é mais bela como a terra. 
Ele fez da pintura seu mundo. Seus companheiros, que tanto gostavam de conversar com ele sobre arte, telefonavam todos os dias. O Manzo era indispensável para os amigos. Quando fazia parte da comissão organizadora do Rio, Henrique Manzo foi muito querido. Como Presidente do Salão, a admiração que os artistas tinham por ele deixava-o muito contente. Quando fez parte do Júri de Seleção, combateu a má pintura, explicando para os artistas o que considerava certo. 
Ele não se conformava com aquilo que não era da natureza, porque só pintava a natureza.
Henrique Manzo queria bem a tudo que pertencia à pintura: palhetas, pincéis, tintas, seus cavaletes e suas telas para poder pintar; lápis, borrachas, carvão de desenho. Gastava uma fortuna comprando caixas no Esparapanho, pois custava caro naquele tempo. Palhetas ele mesmo fazia, pois o dinheiro era pouco. Tinha espátulas de todos os tamanhos. 
Nunca deixava de preparar as telas para pintar, pois quadros eram seu fraco.
Henrique Manzo nasceu para pintar a natureza que tanto amava, e morreu deixando sua pintura para todo mundo que em vida não soube compreendê-lo. Deu tudo de si na pintura e nos desenhos, até os 79 anos. Dizia: “Se a humanidade não compreendeu o que fiz por ela, um dia irão me compreender, só desejo muito obrigado a todos”. 
Porque o Manzo gostava de tudo que fosse da natureza, um homem, uma mulher, uma criança ou uma paisagem. Fazia também escultura, mas não apreciava muito. Gostava mesmo da pintura. 
Como seria bom se a gente soubesse o que se passa dentro da cabeça dos homens. Porque uma obra de arte boa é um fenômeno de uma inteligência humana, também uma criança que nasce é uma obra de sua mãe, para mim é a mesma coisa. Que fenômeno quando uma criança tem um ano. 
Henrique Manzo era tudo isso, um pintor que cria uma obra de arte como Deus cria uma criança. Quanto é bela a natureza que os homens pouco apreciam. Se olhassem mais para ela, os homens seriam mais unidos, mas os homens não querem compreender, espero que um dia consigam, assim dizia Henrique Manzo. 
Ele dizia: sem o homem chamado sol, a senhora chuva, a senhora terra, que são os astros da natureza, nós não poderíamos viver. 
Porque os homens não param para pensar mais nas crianças, porque todas as crianças serão o mundo de amanhã, assim dizia o Manzo. 
Em sua infância, Henrique Manzo começou a desenhar nas calçadas, nas paredes, nos muros. Fazia um desenho de homem num muro e, no dia seguinte, apagava e o desenhava um pouco mais para a frente como se estivesse andando, dizia “vamos andar mais um pouco, ficaste muito parado”. 
Aos oito anos, fez uma marionete com a ajuda de seu pai. Cobrava um tostão a entrada do espetáculo. 
Aos nove, pintou o quadro do Beijo, que ainda está no museu dele, à Estrada Turística do Jaracuá, nº 3.400. Fez uma máquina para tirar fotografias. Uma amiga trazia os cartões, ele desenhava as pessoas, dava um banho e estavam prontas as fotografias. As pessoas gostavam e ele ficava todo contente. Vivia rodeado de meninas. Também sabia fazer quadrados e balões. 
A vida de Henrique Manzo foi essa na infância. Respeitava muito seus pais e gente de idade. Quando queria qualquer coisa, pedia para os pais, que tinham muito carinho com ele. Mandavam seu irmão mais velho atrás dele, pois era muito distraído. 
Quando pequeno, era muito irrequieto. Quando tinha oito anos, ficou muito doente. Os pais levaram-no ao médico, que falou que a causa eram as tintas. Ficou muito sentido porque os pais esconderam as tintas e os pincéis, então foi à Várzea do Carmo e pegou terra, filtrou e pintou uma paisagem com ela. Eu vi essa paisagem, ele ficou com vergonha e escondeu, até hoje não sei que fim levou. 
O mundo para ele era uma paisagem, mulheres, homens e crianças. Ele era um pintor de figuras, que tanto adorava. 
Quando era pequeno, desenhava uma figura de homem todos os dias no muro do Gasômetro do Brás. Todo dia deixava ele andar um pouco. Tinha apenas sete anos.
Tinha um modo muito estranho de pensar. Dizia que, se fosse obrigado a vender um quadro, estava vendendo o seu eu de pintura. A boa pintura não se vende, se adora.
Em 1921, foi trabalhar como cenógrafo para a Companhia do Souza, com contrato de um ano. Henrique Manzo concorria no Salão, onde ganhou vários prêmios. Era muito estimado pelos artistas e jornalistas. 
Em 1934, esteve em Portugal, onde pintou muitas paisagens que estão na galeria. Os portugueses gostaram muito dele. Em Boticas, quando pintava, ficava rodeado de gente que nunca tinha visto nenhum pintor. Ficaram muito admirados. Quando saiu de casa no outro dia, foram atrás para vê-lo pintar, pessoas idosas pediam para que ele fizesse seu retrato. Ele dizia: “Eu vou voltar e pinto todos vocês”. 
Até os presos da Penitenciária gostavam do pintor Henrique Manzo. Levava cigarros para eles, que ficavam sentados com as pernas para fora passando os pés pelas grades. Quando Manzo passava para pintar ficavam muito alegres. Ele encostava e entregava o maço de cigarros; quando voltava, esperavam na janela e gritavam “viva o pintor, viva o Brasil e viva o brasileiro Sr. Henrique Manzo”. Quando voltamos para o Brasil, eles ficaram muito sentidos e choraram que nem crianças. Passamos de carro em frente e eles diziam “votle logo, senhor pintor Henrique Manzo”. 
Estivemos na Espanha visitando o meu irmão depois de termos visitado minha mãe em Portugal. Henrique Manzo gostou demais da natureza desses dois países. O tempo era muito pouco, mas assim mesmo pintou algumas paisagens. Umas foram vendidas na exposição de 1938 e na de 1948, as restantes não quis vender e estão na Galeria do Henrique Manzo. Ficou magoado porque teve de negociar as paisagens; Manzo gostava de pintar, mas não de vender, pois o amor que tinha pela sua arte era muito grande.
Foi um símbolo da paisagem brasileira, principalmente do Pico do Jaraguá. Construiu lá uma casa e sua Galeria, para guardar as obras de arte de que tanto gostava. 
No começo foi muito difícil. As estradas eram todas de terra e ele tinha que ir para a Escola de Belas Artes na Estação da Luz, onde foi professor durante 30 anos. O sacrifício foi grande, mas nada abalava Henrique Manzo. Abriram mais estradas, que foram asfaltadas, e assim foi até 1982, quando veio a falecer. 
Não estou certa se foi em 1919 ou 1920 que Henrique Manzo pintou vestidos para Ana Pavlova, a maior bailarina do mundo. Ela ficou tão satisfeita que queria contratá-lo para viajar com sua companhia para pintar vestidos e cenários, mas ele não aceitou sua proposta. O motivo foi sua mãe, que ele tanto amava e não deixaria por nada deste mundo, e também sua arte, que era sua segunda mãe. Quando sua mãe faleceu em 1934, ficou muito doente. Depois de um mês, fizemos uma viagem a Portugal e ele melhorou. Na volta ao Brasil, depois de dois meses, houve um incêndio nas propriedades. Ficou muito abalado, mas com muita coragem reformou tudo de novo. 
Em cenários, trabalhou para Ana Pavlova, Procópio Ferreira, Froes, Souza e Companhia Elsa Garide. Fez muitos gabinetes para o Conservatório Municipal de São Paulo, trabalhou para Companhia do Municipal, Crestiano, Oswaldo Viana, Jaci Camargo e Jaime Costa. 
Assim era o grande mestre e artista Henrique Manzo, um homem feliz com a sua pintura e uma galeria afastada e particular próxima ao Pico do Jaraguá. Tinha sua inspiradora com ele, Narciza, sua esposa e principal modelo de suas telas. Grande homem, pessoa de fino trato, demonstrava uma grande sensibilidade, sempre com seu blusão azul e boina típica sobre o rosto envelhecido. Uma figura respeitável. 
Suas mãos eram duas jóias que brilhavam nas telas. 
Em 1953, veio da Itália para o Brasil Amleto, um filho de seu tio. Depois de três meses no país, veio nos visitar e pedimos para que viesse morar com a gente. Aceitou nosso convite e ficou com os tios até hoje. Seu tio, que gostava muito dele, veio a falecer em 1982. Amleto foi de grande ajuda para eles. 
Ele compreendia bem o tio e os dois resolviam tudo de comum acordo.
Este trecho final parece ter sido escrito por outra pessoa - talvez pelo datilógrafo - e encaixado no final do texto:
Em 1984, a tia e Amleto resolveram se casar e continuar morando aqui, pois não podiam se mudar porque Henrique Manzo deixou a sua Galeria de grandes obras para entregar para o Governo do Estado de São Paulo, que até o momento não respondeu.

Sobre o Autor:
Marinaldo Gomes Pedrosa Marinaldo Gomes Pedrosa é formado em Jornalismo pela UniSant'Anna. Vive no bairro Jaraguá desde 1976.

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